“Que a força do medo que tenho não me impeça de ver o que anseio, que a morte de tudo em que acredito não me tape os ouvidos e a boca, pois metade de mim é o que eu grito, a outra metade é silêncio… (Osvaldo Montenegro- Metade).
Quando comecei a estudar meu sistema de autoimagem, a primeira dificuldade encontrada foi de lembrar-me da infância. Estranhava quando conversava com meus irmãos mais velhos, que se recordavam de fatos que pareciam não ter acontecido dentro da minha casa ou comigo mesma. Então comecei a considerar ter sido uma criança protegida no circuito familiar ou talvez tivesse vivenciado fatos que preferia não lembrar.
Na verdade, sou a terceira de cinco filhos – sou a do meio, sendo que há um casal mais velho e outro mais novo que eu. Fui caçula até os cinco anos e meio, mas fui criada em um ambiente hostil, com pai violento e mãe enérgica. Meus irmãos mais velhos e minha mãe apanhavam muito, pois meu pai chegava em casa sempre nervoso, depois de um dia estressante de trabalho. Por ser a filha considerada “especial” na família, nunca apanhava dos meus pais, sendo esse um privilégio em detrimento dos irmãos, pois nunca ficava na linha de frente. Reconheço que essa manifestação se repete até os dias atuais.
Soube, pela minha mãe, que aos seis meses de idade caí de seu colo, pois meu irmão mais velho havia passado à sua frente, derrubando-a. Fiquei desacordada por algumas horas e tive atrasos na fase de andar e de falar. Em decorrência disso, sempre tive dificuldades de me comunicar, e gaguejava muito, fato esse que perdurou basicamente até à adolescência. Após essa fase, pensava ter aprendido a conviver com a dificuldade. Até hoje não sou boa articuladora e também não gosto de exposição ou de estar em evidência.
Em razão da queda, minha mãe me levava consigo a todos os lugares aonde ia. Ficava ouvindo-a falar mal de meu pai quando se encontrava com uma velha amiga, que também desdenhava de seu marido. Cresci ouvindo que os homens não prestavam.
Mesmo assim casei-me e tive dois filhos. Tanto meu filho, como meu marido, nunca foram alvos de grande admiração minha, que era toda destinada à filha, que materializou a minha projeção de ser querida, aceita e admirada.
Minha mãe também relatava que eu era uma criança isolada e que brincava sempre sozinha. No meu sentir, eram os meus irmãos mais velhos que não queriam brincar comigo.
Recentemente tenho percebido, através dos estímulos recebidos do Sistema Tempo de Ser, e reconheço que sou basicamente movida pela criança psicológica que trago comigo, apesar de estar fisiologicamente num corpo adulto, sendo, pois, prisioneira da infância.
Através destas percepções, constatei que reproduzo, em vários ambientes onde permaneço por um certo tempo (trabalho, núcleo, amigos, família), o mesmo ambiente infantil onde fui criada.
Mapeando as forças que compõem o meu sistema de autoimagem, tenho a oportunidade de olhar para os fatos de maneira diferente, desenhando suas movimentações e quais arquétipos me acionam a cada ciclo vivido. Também consigo imaginar o sentimento de culpa que permeava meus pais e irmãos mais velhos na minha casa e que, de qualquer forma, me acompanha até os dias atuais, até mesmo porque a culpa é um mecanismo biológico.
Quanto ao marido e ao filho, passei a olhá-los de forma diferente, reconhecendo no filho as minhas forças frágeis e dependentes – antes nunca encaradas, mas necessárias e que me compuseram e trouxeram até onde estou. Quanto ao marido, um olhar de admiração é destinado em sua direção, pois comecei a perceber que a nossa relação deve ir além dos movimentos materno e paterno que projetamos e introjetamos mesmo sem querer.
No tocante ao isolamento antes mencionado, depois de várias auto-observações pude perceber que se trata de uma proteção usada para mascarar a indiferença sentida com relação às pessoas, à minha volta, e que as culpava por não me sentir inserida, sem perceber que se tratava de uma opção e um movimento meus, ainda que inconscientes. As amizades começavam bem, mas logo sentia que havia um afastamento por parte delas, o que de fato observava através de uma lente viciada pela rejeição e pela indiferença sentida por uma criança psicológica.
Atualmente passei a ficar mais atenta a esses fatores e perceber minha estagnação na fase da puberdade, vendo a dificuldade de fazer a travessia entre a infância e a adolescência, encerrando esse ciclo de medos e fugas, que só conseguirei transpor conhecendo a mim mesma e encarando a morte desses ciclos.
Educadora: Eliane Demarchi
Núcleo de Birigui
Contos e Autoencontros
A não compreensão e entendimento do mundo interior levam-nos à busca de efetivar meios de auto-observação, para que fiquem visíveis atitudes e sentimentos que nos movimentam. Um dos meios para observarmos nossas movimentações é a descrição do nosso percurso como educador de essencialidades. O texto publicado anteriormente é uma autodescrição resultante de um projeto elaborado pelos Educadores de Essencialidades do Núcleo de Aprendizagem de Birigui do Sistema Tempo de Ser, dentro da atividade do grupo vespertino de Prática de Inteligência Mediúnica. O projeto tem como proposta a exposição ao meio social das repercussões dos estímulos de autoaprendizagem aos educadores de essencialidades nos ambientes do Sistema Tempo de Ser. Durante sua execução, tem sido considerado que o “autoencontro” pode ocorrer a partir da auto-observação e autodescrição dos “Contos” (história imaginada) que permeiam a existência humana.