“E se um dia, ou uma noite, um demônio te seguisse em tua suprema solidão e te dissesse: Esta vida, tal como a vives atualmente, tal como a viveste, vai ser necessário que revivas mais uma vez e inúmeras vezes; e não haverá nela nada de novo, pelo contrário!” [1]
Observe o horizonte da sua própria memória, desde o momento que você tem consciência de que era algo. Certamente o período da infância irá visitar teus pensamentos, reavivando sensações e lembranças com alguns momentos vividos, seja com dor ou prazer. Lembra? Do que viveu com seus pais, irmãos ou outros familiares? Lembra? dos afetos e desafetos constituídos na interação com muitas descobertas experimentadas na infância?
Se ainda se permitir continuar a lembrar, e talvez seja o seu caso agora, observará as memórias da sua puberdade em meio a conflitos, verdadeiros tsunamis sensoriais e emocionais quase afogando você no grande medo do oceano desconhecido das dores e angústias. Isso até ser arremessado a uma realidade iminente em direção à adolescência.
Que fase, lembra? Quanta arrogância, desobediência, destemor e medo lhe deu base para enfrentar os desafios de ser você? E as exigências da etapa adulta impondo modelos para que você se encaixasse em rótulos e formas de viver que desafiavam a sua coragem? Isso até ser engolido, definitivamente, pela vida adulta, pela necessidade de sobreviver às exigências das contas, das necessidades de um lar, da chegada dos filhos.
Que travessia! E se você já percorreu essa ponte da fase adulta, então, tem agora diante si a visão de sua própria história. O envelhecer é o ponto mais alto a partir do qual é possível contemplar o horizonte da história vivida.
Eis o convite que podemos extrair da provocação feita pelo filósofo Nietzsche, um poderoso e provocante sussurro que se aproxima silente de nossos ouvidos, como uma presença que nos adverte da necessidade de voltarmos o olhar para a trajetória de nossas vidas.
Nesse ponto é fundamental ter olhos de águia para observar a si mesmo, porém, não como alguém que observa com pressa e superficialidade uma paisagem mais ou menos interessante, é necessário olhar os detalhes, a correlação entre passos e fases vividos. Encarar cicatrizes e as dores descritas em nossas peles como um verdadeiro mapa assinalando a experiência de uma longa jornada. Olhar os espaços dos desejos proibidos, dos segredos vividos (e não vividos), contar para si essas histórias com outro olhar e contemplar o homem como ele é.
E se, amigos, nesse instante de profunda contemplação de si mesmo, no momento que se investiga a história mais recente até a mais antiga, a mais aceitável até a mais negada, essa voz sussurrante lhe dissesse que essa vida – como a vive – será necessário que a viva e reviva inúmeras vezes? E que não haverá nela nada de novo, pelo contrário, haverá o mesmo ser humano que se apresentou e se apresenta mais escancarado ante os seus olhos sensíveis e mais abertos. Você aceitaria a si mesmo? Reconhecer-se-ia em sua história humana com acolhimento? Aceitaria o homem como ele é?
A provocação do demônio Nietzschiano pode ser, facilmente, interpretada como um chamado maligno. É natural sentir medo de olhar na direção do desconhecido, desse mal-estar que sentimos nas entranhas de nossa própria história ignorada, temida. Visto desse modo, somos todos um desconhecido para si mesmo.
É, também, natural incorporarmos o sentimento desmedido dos heróis para aclamar que só tem valor o que está à frente – o passado já foi! Ora, que frente pode ser vista sem o contraponto do antes, do passado? Como viver a experiência dos próximos passos sem o conhecimento e compreensão do que vivemos?
Certamente alguém dirá – Mas não é isso que estamos fazendo? indo em frente apesar do passado? – E aí podemos reconhecer nossa condição de cegos, inconscientes e negadores de nossa humanidade, pois quem pode compreender o que fica perdido no apesar? Quem é capaz de aceitar o que não compreende? Quem é capaz de acolher o que não se aceita?
O Eterno retorno do mesmo ser humano é uma provocação que mira a alma humana para questionar: “Aceita-me ou te devoro” – na inconsciência?
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[1] NIETZSCHE. Gaia ciência, aforismo 341, livro III.
Por Fabiano Fidelis de Souza – Educador de Essencialidades do Sistema Tempo de Ser
Ótima reflexão.
Parabéns ao autor pela sensibilidade e belas colocações.
Profundo e verdadeiro.
Me levou a uma imensa e agradável viagem no tempo, no meu próprio tempo.
Parabéns!!!!!
Parabéns Fabiano, é tudo isso e mais um pouco, foi direto ao foco.
Não é difícil ver, precisa “aprender a ver”. A gente ainda não sabe! De repente o sentir toca a filigrana de uma vivência lá na puberdade. Algo acontece que surpreende! Sinto, sofro, vejo, continuo sentindo, admito, compreendo … eis que equalizo!
Síntese!
Reflexivo e oportuno seu texto. Obrigada!