Liberdade é trafegar em si mesmo, com conhecimento de causa

O que é ser livre, pra você? Fazer o que você desejar, quando e como desejar? Não sofrer qualquer constrangimento quanto ao que você deseja fazer? Estar fora de prisões ou regras que determinem como comportar-se ou pensar? Não se prender a relacionamentos? Estar livre dos sistemas econômicos ou políticos?

Caso tenha encontrado afinidade em uma dessas questões acima, tente, agora, considerar que cada ser humano no planeta viva, a partir dessas questões, as suas próprias definições de liberdade. Como seria? Pode imaginar?

Nessa hora não há como não evocar Cecília Meireles [1] através da conhecida frase: “Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, não há ninguém que explique e ninguém que não entenda”, exatamente porque, apesar de não conseguirmos explicá-la, entendemos a necessidade de liberdade que todos sentimos. Ora, mas o que é liberdade?

Há pelo menos duas noções de liberdade que dizem respeito às questões formuladas no primeiro parágrafo. Elas permeiam a noção que temos sobre o ato de ser livre. A primeira trata-se de uma liberdade por autodeterminação e autocausalidade, calma! Não se espante, aliás! Espante-se, sim, pois a estranheza também é capaz de convocar a inteligência à reflexão.

Na primeira noção, liberdade é quando estamos ausentes de todas as condições e limites; pode imaginar isso? Viver sem nenhuma condição e limite? Um ser ilimitado. A segunda noção é a liberdade como necessidade, ou seja, livre é quem se autodetermina em função de uma totalidade de que faz parte. O que essa segunda noção quer dizer? Que só podemos falar de liberdade dentro de limites e condições de que fazemos parte; percebem a diferença entre as duas? Praticamente opostas, não é?

É impossível falar de liberdade sem considerar a realidade humana de que fazemos parte – e aqui nos posicionamos a partir da segunda noção de liberdade. E exatamente porque somos seres constituídos em limites físicos, comportamentais, sociais, com consciência e capacidade pensante que podemos enunciar a questão: o que é liberdade? Só meditamos sobre a liberdade porque o ser humano existe dentro de condições e limites definidos, e isso que nos permite identificar essa necessidade: ser livre.

Na altura desse parágrafo, o que podemos considerar é que não há como falar de liberdade fora das condições e limites humanos. E talvez ainda pareça estranho pensar a liberdade dentro de limites e condições. Mas não é exatamente a partir da noção de que estamos inseridos em limites, condições e regras que se justifica a necessidade de liberdade? E mais ainda, se a liberdade só pode ser considerada a partir dos limites humanos, a liberdade não consiste em negar, destruir ou sair dos limites, condições e regras de que fazemos parte, o que anularia qualquer necessidade de liberdade.

Se para entender a liberdade preciso considerar condições e limites humanos, então precisamos reconhecer quando e como nos foram impostos essas condições e limites? A origem de todo ser humano resulta da união entre uma fêmea e um macho a partir do ato sexual. Nesse aspecto, não podemos fugir da condição de seres da sexualidade humana e da força biológica humana. Considerando essa realidade, saímos de dentro da fêmea e fomos tomados pelos cuidados maternos, cheios de condições e limites, ante a fragilidade dos nossos corpos. Toda formação da personalidade, para aprendermos a conviver em sociedade, é constituída a partir da relação, sobretudo, com nossos pais ou familiares.

Assim, se somos formados e não nos formamos ou nos autodeterminamos desde o princípio é porque existir é uma imposição. Quem ou o que escolheu aparecer a partir do corpo da mulher que chamamos de mãe? Quem ou o que definiu as características físicas que compõem nossos corpos? Fomos nós que definimos nossa base fundamental da personalidade no período infantil? Não, não fomos.

Refletindo a partir dessas questões, não podemos afirmar que somos livres, mas determinados biológica e psicologicamente na interação com o meio e com outros seres humanos. Que limites, condições e regras se impõem antes que possamos tomar consciência e conhecimento de qualquer uma delas. Que crenças, valores e conceitos são aprendidos no período infantil, em que somos incapazes de decidir por nós mesmos.

Considerando nosso histórico de formação, os limites e as condições que nos impõem formas de sobreviver, relacionar, pensar, interpretar e sentir a nós mesmos e ao mundo, é necessário reconhecer que o ser humano não é livre por natureza. Tanto quanto não podemos dizer que seja prisioneiro por natureza, já que, para reconhecer-se prisioneiro, precisaria reconhecer a necessidade de liberdade.

Olhando a partir dessa conclusão, só nos resta admitir que a liberdade não é exercida fora de nós. Não é possível autodeterminar-se no mundo, já que no princípio somos determinados a surgir no mundo através de uma espécie, e a sermos desenvolvidos, por meio dela, dentro dos limites humanos.

Se não podemos alterar o que foi formatado, podemos conhecer para conduzir-nos nos limites da nossa formação humana. E talvez esta seja a noção legítima de liberdade, aprender a trafegar em nós mesmos a partir do conhecimento das causas que determinaram nosso modo de ser. Nesse aspecto, conhecer a própria infância é desvendar o labirinto desconhecido que trafegamos, cegamente, ainda hoje.

É em meio às condições desconhecidas da dimensão subjetiva humana que podemos exercer o aprendizado da liberdade. Pois, uma vez que foi constituída, as condições e regras, a partir da formação na infância, é conhecendo essa estrutura interna, suas leis, princípios, valores, crenças e comportamentos que a liberdade pode ser exercida de dentro de si, com conhecimento de suas causas. Nesse caso, a autodeterminação, marca da liberdade, parte do interesse de nos conhecermos para sabermos quem somos, como funcionamos.

Dentro da definição a que chegamos, sobre a liberdade, governar a si mesmo exige conheçamos aquilo que já nos governa desde o princípio. Assim, a liberdade ocorre na medida do autoconhecimento que desenvolvemos. Imaginemos se já conhecêssemos os princípios, leis e estrutura do funcionamento de nossa própria dimensão interna humana, não seria natural transitarmos com conhecimento de causa? E com o mesmo conhecimento não seria natural exercermos em nós mesmos e no mundo a liberdade de viver uma vida singular dentro da condição humana? Mas como exercer a liberdade em si sem se dar início ao autoconhecimento? Vamos dar início?

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[1] foi uma jornalista, pintora, poeta, escritora e professora brasileira, considerada uma das mais importantes poetisas do Brasil (1901-1964).

2 comentários em “Liberdade é trafegar em si mesmo, com conhecimento de causa”

  1. Renato Otto

    Ideia clara e magnificamente correta! Sendo assim, poderíamos experimentar a liberdade na mais segura das prisões.

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