Essa frase é de autoria de Tokinho Carvalho, músico e poeta mineiro. Quando perguntado sobre a mensagem que trouxe nos versos explicou: “vivemos numa sociedade muito egocêntrica, né? O próprio umbigo é sempre mais importante que o do outro. É um querendo pisar no outro, um querendo ser mais que o outro. A frase vem no sentido de exaltar quem vai na contramão do egocentrismo e para olhar o outro, pra se preocupar com o que o outro sente, vive e sonha. Acho que o ego é importante, mas ele não deve ser maior do que a consciência de que não estamos sozinhos no mundo. Quis brincar com um dito popular, e acabei remixando ele. [1]
Pode-se dizer então que o autor atribuiu um significado especifico para o verso, que constitui de certa maneira, uma realidade objetiva. Contudo, existe a probabilidade de que haja por parte dos leitores um entendimento ou uma interpretação muito particular do mesmo verso, o que também constitui de certa maneira, uma realidade subjetiva.
Surge daí algumas questões: é possível existir uma realidade objetiva e subjetiva simultaneamente? Será que sempre, necessariamente e de maneira absoluta, em qualquer situação e caso, somos capazes de conhecer os fatos, os seres e as coisas tal como eles são?
Se a resposta for um ‘sim’, pode-se considerar que a sua mente ou sua consciência é a sede da razão, de modo que tudo e todos são percebidos na sua totalidade, decorrendo daí a liberdade para todas as escolhas e decisões e as consequências delas advindas.
Se a resposta for um ‘não’ podemos considerar que estamos vivendo num mundo de enganos e ilusões, pois em verdade, a realidade exterior e a realidade interior nem sempre são o que aparentam ser.
Em relação a realidade exterior, a Ciência nos dá um poderoso exemplo quando demonstra, que nunca conseguiríamos tocar algo ou alguém, mas ainda assim, temos convicção de que o fazemos.
Vejam só: conforme o princípio inicial da Física, tudo o que existe – incluindo nossos corpos – é composto por átomos e já se sabe que os átomos são formados por partículas ainda menores, que são os prótons, nêutrons e elétrons, além disso, sabemos que no interior dos átomos existem grandes ‘vazios’ que os separam.
Então, quando nos aproximamos muito de uma matéria, temos a sensação de estar tocando nela, mas a força de toque que sentimos é na realidade uma repulsão elétrica entre partículas de cargas iguais a uma distância mínima. Cientificamente, isso significa que chegamos muito perto de outros corpos, mas nunca realmente chegamos a tocar neles.
A partir desse exemplo, podemos e devemos considerar a limitação dos nossos sentidos para a total percepção dos inúmeros e variados estímulos e objetos que existem no ambiente em que estamos inseridos, o que nos leva a considerar que existem inúmeros e variados fatos, seres e coisas que são absolutamente invisíveis aos nossos olhos e, assim, de certa forma, são inexistentes na nossa realidade.
Podemos aplicar esse mesmo raciocínio para a nossa realidade interna, onde sensações, emoções, sentimentos e pensamentos constituem-se nos inúmeros e variados estímulos que na sua imensa maioria são absolutamente invisíveis e desconhecidos, portanto, inexistentes para a nossa própria consciência.
Isto significa que no âmbito da convivência em sociedade e mais especificamente ainda, no âmbito de nossos relacionamentos, existem realidades acontecendo de modo muito próprio e independentemente da nossa.
Nesse sentido é importante refletir quanto esta ocorrência marca e influencia nossa conduta, postura e nossas atitudes nos diversos relacionamentos que mantemos.
Quando um filhote humano nasce, este não possui condição ou capacidade de se reconhecer ou se identificar em um corpo e assim, não tem a mínima noção de que é algo e menos ainda que existe.
O filhote é, por assim dizer, apenas um ‘candidato a humanidade’ pois só se tornará uma pessoa humana gradualmente, na relação com outros homens, isto é, seu comportamento e sua formação como pessoa será fruto das interações, relações e da convivência com os demais seres humanos.
Assim é que desde o recém nascimento até por volta dos três anos de idade, ocorre não só o desenvolvimento físico, mas simultaneamente são desenvolvidos os comportamentos, hábitos e cultura compatíveis com a época e o contexto do nascimento.
Isso quer dizer que da convivência e da relação com os pais ou cuidadores são herdadas tendências, valores, conceitos e crenças e isto é o que determina qual será mundo e qual será a natureza das relações que irá viver, o que significa afirmar que as experiências do início da vida interferem substancialmente na formação da personalidade do indivíduo, ditando os limites e o tônus de sua manifestação.
O ego, segundo Freud, é uma das instâncias que estruturam o psiquismo humano se desenvolvendo gradual e progressivamente até os três anos de idade, momento em que a criança se apropriará do seu Eu, isto é, tem o sentimento de si, de modo que não mais se confunde com o mundo ao seu redor.
É natural desse período de estruturação da personalidade o egocentrismo, ou seja, do ponto de vista cognitivo, a criança ainda não possui esquemas conceituais e lógicos – não sabe como as coisas funcionam – e assim, para compreender a realidade, parte sempre do seu próprio Eu atribuindo suas emoções, sentimentos, pensamentos a pessoas, animais e objetos, misturando fantasia e realidade.
Do ponto de vista psicológico, o ego é a instância que lida com a estimulação que vem tanto da intimidade do próprio indivíduo (realidade interior) quanto do ambiente (realidade exterior).
Sua função é mediar as exigências das pulsões[2], decidindo se elas devem ou não ser satisfeitas, adiando essa satisfação para ocasiões e circunstâncias mais favoráveis ou reprimindo parcial ou inteiramente tais excitações, sendo assim, sua ação visa garantir a saúde, a segurança e a sanidade da personalidade.
Aqui é importante destacar que cérebro e corpo mantém contínua e intensa relação entre si e, da mesma forma, com o meio ambiente, para que respostas adaptativas ou seja, as melhores respostas e o comportamento mais adequado garantam a sobrevivência física e emocional.
Quando um conflito ou evento é considerado uma ameaça, ou seja, todas as vezes que o corpo ou parte dele ou da personalidade estão sob ameaça (real ou imaginada) e não se tem condição ou capacidade de real enfrentamento, ou seja, quando somos obrigados a admitir nossa fragilidade, o ego entra em ação para proteger toda a personalidade e faz isso através de ‘mecanismos de defesa’.
Um desses mecanismos é a projeção. É denominado projeção o ato de atribuir a uma outra pessoa, animal ou objeto as características, qualidades, sentimentos, pensamentos e intenções que tem origem em si próprio. O indivíduo desloca aspectos de sua própria personalidade ou realidade íntima para o exterior de modo que a ameaça é sentida como uma força externa. O indivíduo não tem a mínima noção de que a ideia ou comportamento que ele critica no outro está nele mesmo, ou seja, não vê em si o que lhe parece óbvio no outro.
A essa altura dos argumentos traçados sobre a base que fundamenta nossa forma de ser e estar no mundo, uma questão importante se apresenta: somos capazes de ver o outro como ele é?
Sua resposta vai te aproximar ou distanciar da coroa, afinal, em terra de egos quem vê o outro e rei.
Márcia A. Pessoa
Educadora de Essencialidades
Núcleo de Londrina
[1] In: http://blog.poemese.com/poesia-camiseta-tokinho/ – Consultado em julho/2018
[2] Pulsão ou instinto consistiria numa espécie de energia psíquica que tende a levar o indivíduo à ação, para aliviar a tensão resultante do acúmulo de energia pulsional.
Márcia, fantástico o tema, parabéns.
Maravilhoso, pois a escrita esta clara e objetiva.
Parabéns Educadora Márcia.
É uma honra ter um texto tão bacana a partir da minha frase. Muito obrigado, Márcia! <3