Durante a vida, confrontei muitas vezes com a realidade “morte” em suas multifaces: no trânsito pelas fases existenciais, nas idas e vindas de pessoas queridas, na reformulação de ideias e ideais etc. Tudo sempre esteve em pleno trânsito – de um ponto ao outro, de um estado de consciência a relativa amplitude, de um corpo à falta dele. E quando digo “pleno” é por considerar que só há vida no movimento.
Tanto a iminência quanto a constatação de desaparecimento de algo, de alguém, ou de uma condição específica, acionam temores íntimos que deixam visível meu incômodo frente à volatilidade do existir; e sentir essa condição – por vezes – ameaça a própria lucidez.
Há algum tempo, e talvez por ter adentrado um período da vida em que a vitalidade do corpo principia a decantar deixando visíveis as marcas do envelhecimento, o tema morte tem se tornado proeminente em minhas reflexões.
Sempre pensei a morte como perda, como o desaparecimento de coisas e de afetos, consequentemente, como um evento ruim que produz dor. Hoje, aos 52 anos, questiono como posso viver uma vida consciente sem considerar a morte, se a todo instante ela dá sinais de que vive em meu cerne e a qualquer momento exigirá seu direito de manifestar-se mais ostensivamente.
Diante da real noção de que ao nascer já somos suficientemente velhos para morrer, e de que viver “gasta a vida”, questiono o sentido que tenho dado à experiencia “existir”.
Nos últimos doze meses, muitas mortes, ou iminência de, aconteceram…
Uma amiga de 48 anos viveu um derrame e desaprendeu a ler, a falar, a escrever e a andar com segurança. Por vezes viajo até Belo Horizonte e vou encontrá-la, mas me deparo com os limites da pessoa com quem convivi outrora.
Outra amiga faleceu em decorrência de um aneurisma que rapidamente consumiu seu cérebro, seu corpo, suas ideias e ideais. Juntos, eu e outros amigos choramos as oportunidades que não vivemos. Deixamos muita coisa por organizar; não considerávamos que esse “evento” da vida nos pudesse alcançar tão cedo.
Outra amiga viveu um processo de adoecimento materno que se estendeu, de forma muito dolorosa, até que a morte se consumou em meados de 2016.
Os dias foram passando…
E mais uma amiga, diagnosticada com câncer, viveu (e ainda vive) os desafios impostos pelo adoecimento. O desejo arrebatador de cuidar de suas crias, uma delas recém-nascida, fazia-a estremecer diante da possibilidade de morte. Cotidianamente ela experimentou o limiar da força vital e pisou, solitariamente, no céu e inferno íntimos.
Vi um irmão definhar na droga; vi minha mãe e tias – idosas queridas – tentarem equilibrar-se em seus corpos gastos pelo tempo e pelas inúmeras emoções recolhidas nas experiências individuais.
E pensava: para onde ir? Tenho que ir?
Tocando e trocando experiências com essas amigas que viveram (e que ainda vivem) suas lutas para sobreviverem “um tempo a mais” nos corpos adoecidos, senti como a nossa fragilidade é enorme. Quantas vezes pude ver o mais amplo desamparo “saltar de dentro” delas, e de mim também…
Um final de tarde, após escutar essa amiga, que luta contra o câncer, falar de suas dores e receios, entrei no carro e dirigi, envolta em meus pensamentos e emoções, só parando para ver o pôr-do-sol que prenunciava um espetáculo… Em silêncio, chorei e considerei, comigo mesma: – eu não quero lutar contra a morte; quero olhar minha morte nos olhos! Quero ter consciência dela; quero lucidez para perscrutá-la, proximidade para decifrá-la. Quero estar com os meus afetos e despedir-me. Quero contar-me – e a quem mais quiser escutar, como senti a experiência “vida”, o que aprendi e o que não consegui alcançar. Quero estar com quem aprendi. Quero serenidade para formular mais questões sobre o fenômeno “surgir e desaparecer em um corpo”. E, se possível, sem pressa! Quero chorar a ausência que minha sensibilidade prevê, sem culpa e sem dramas. Quero falar dos meus medos, nem que seja só para mim. Quero dizer “não” a tudo que minha consciência entender como desnecessário, mesmo que a ciência insista em me apresentar como recurso. Quero usufruir desse direito. Talvez considerando a morte eu não gaste meu tempo tentando evitá-la, mas possuindo-a. Quero apresentar-me à morte e que ela definitivamente se apresente a mim! E, nesse momento, quem sabe, encher-me de vida.
Certo dia, vi um vídeo da médica Ana Claudia Quintana Arantes que dizia: – “a morte ensina a viver; este é um dia que vale a pena ser vivido”.
Se assim for, quero conduzir-me sensível e lúcida ao leito finito. Olhar o entorno, abarcar o que me envolve, encher meus pulmões de ar e, em um último suspiro, encher-me de vida e morrer em mim, comigo, por mim!
Quero lucidez para viver a minha morte!
Eduacadora: Claudia Zacarias
Núcleo São José dos Campos-SP